quarta-feira, 16 de março de 2011

Um capítulo...

... de uma estória que nunca terminei:

"Ou não
“Keep trying for you
Keep crying for you
Keep flying for you
Keep flying for you
I'm falling
I'm falling”
No Ordinary Love – Sade



No momento que ela olhou para baixo, lembrou de tudo que a levara até ali. Vozes à distância misturavam-se e eram trazidas pelo vento como sussurros fantasmagóricos. Estava frio. A pele extremamente fina dos pés arrepiava-se ao tocar o chão e sentir a umidade deixada pela chuva que durara o dia todo. As vozes diziam para ela entrar e ser sensata. Um vento forte trazendo o cheiro do mar levantou seus cabelos e cobriu-lhe o rosto por fios delicados de cor negra profunda, obliterando sua visão por um instante. “Seria melhor eu entrar... não seria?”. Encheu os pulmões. Parecia se preparar para mergulhar no escuro oceano que a circundava a poucos quilômetros, exceto pelo fato de que abaixo tudo que havia era concreto e patéticas figuras gesticulantes. Abraçou a si mesma, sentiu através dos rasgos de sua roupa a pele gelada. Pensou em um peixe. Um peixe se debatendo no concreto lá embaixo. A umidade do chão e do ar parecia impregnar cada vez mais tornando sua outrora macia pele, pegajosa e ainda mais fria que o de costume. “Um peixe”. Mesmo assim, sentia-se bem. Livre. Os pensamentos vindo e indo, leves, transparentes como lâminas de gelo. Tão cortantes quanto. Mas ela estava lá em cima, nada importava, a um passo da liberdade total. Abriu os braços finos e impressionantemente brancos, as mangas rasgadas chicoteando. Inclinou-se mais uma vez e lembrou de tudo. “Seria melhor eu deixar ir... Deixem-me ir... Deixar morrer... Deixem-me...”.
O cabelo grudava em seu rosto e mesmo assim podia-se ver o brilho triste de seus olhos verdes. “Éramos perfeitos. Somos perfeitos”. Não conseguia entender porque estava sozinha. Não entendia porque havia sido deixada. Noites e noites de diversão inebriante, sugando tudo que havia de vida ao redor. Não era assim que deveria ser? Durante dois meses tudo havia sido perfeito. E de repente a paz se foi. “Então você preferiu partir meu coração... Eu deveria ter percebido desde o começo. Sua apatia é o que mais me dói...”. Àquela altura, a dor deveria ter passado, mas ironicamente ainda estava viva dentro dela. Ou seria isso apenas uma lembrança de quando vivia? O vazio é pior que o sofrimento? “Eu deveria ter percebido... dois de nós... juntos... seria perfeito demais”. E ela lembrou de senti-lo se afastando. A distância aumentava enquanto se olhavam nos olhos e afundavam em excesso de sinceridade. Um jogo no qual o perdedor é quem não desvia o olhar. Ele desviou.
Agora ela olhava para baixo. Sabia que não encontraria mais a vida que tinha antes. Não encontraria vida nenhuma lá embaixo, mas sim, deixaria tudo morrer, tudo passar. Tudo que ela não conseguia deixar para trás. Encheu os pulmões novamente. O sol tinha partido havia cerca de meia-hora, mas o céu se recusava a escurecer completamente. “Nada sobreviverá ao impacto... Nada do que insiste em se manter nas minhas memórias”. Meses de tortura física e mental não se comparavam à agonia de estar presa a um sentimento renegado. Jogou os cabelos para trás e levantou os olhos ao céu. Branco como naquele dia. Perfeito. Sentia a falta do contato físico como se aquilo fosse a base para sua vida. Podia senti-lo naquele momento, mais uma vez enganada pelas lembranças. “Preciso deixar ir... Por que você permitiu que eu ficasse assim?”.
Deu um passo a frente e caiu. As pessoas gritavam, mas o som não chegava aos seus ouvidos. O impacto de dez andares devia ser o suficiente. “Você não me entendeu... Justo você...”. Em frações de segundo, sentiu seu beijo que nunca acabara. Eterno. Os lábios apertados. A mente em êxtase. A existência perdia o sentido e nada mais poderia matá-los. Eterno. Era só deixar-se cair. A sensação de estar voando, sem o peso da existência vazia. Nunca mais. Então vieram dois sóis, um garoto gritando, a fúria e o sangue. “O sangue!” Ela viu as pessoas virando os rostos contorcidos esperando o impacto. Segundos que pareciam não terminar. “O sangue!” Uma mulher abaixou-se e cobriu os ouvidos. Um segurança gritava. Ela lembra de ter pensado: “Eu já estou morta”. Então ela parou.
De pé, na horizontal. Na ponta dos pés. A parede era tão áspera e úmida quanto o teto. Se não fosse o barulho do vento as pessoas lá embaixo jurariam que o tempo havia parado. A noite já os abraçava fortemente. As faces paralisadas foram sumindo na tinta nanquim que inundava o mundo. Ela lembrou do sangue. Via em si mesmo. Estava em seu sangue e nada mudaria. Flexionou as pernas, forçou os joelhos, tomou impulso e partiu."

Nenhum comentário: